29 março 2007

“Não deveria ter visto. Porque, vendo, ela por um instante arriscava-se a tornar-se individual, e também eles. Era do que parecia ter sido avisada: enquanto executasse um mundo clássico, enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem que ser feito. Mas, tendo visto o que olhos, ao verem, diminuem, arriscara-se a ser um ela-mesma que a tradição não amparava. Por um instante hesitou toda, perdida de um rumo. Mas era tarde demais para recuar. Só não seria tarde demais se corresse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã, o que lhe fora entregue à orla do mundo onde era para ser sozinha- à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lembranças, e como incompreensível lembrete restara o cego talismã, ritmo que era de seu destino copiar, executando-o para a consumação do mundo. Não a própria. Se ela corresse, a ordem se alteraria. E nunca lhe seria perdoado o pior: a pressa. E mesmo quando se foge correm atrás, são coisas que se sabem.”


Trecho de “Preciosidade”,
conto de Clarice Lispector em “Laços de Família”

25 março 2007

Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Pela chuva que não vem

Corro, pego o regador
Ela me olha com amor
Sabe o que lhe convém
Sabe o que lhe convém

Às vezes falo ao acaso
Com a samambaia de um vaso
Em cima da janela olhando a baía
Em cima da janela olhando a baía

Usamos telepatia
Falamos da vida
Sobre os amores das flores
E a força secreta daquela alegria


“A força secreta daquela alegria”
( Jorge Mautner/ Gilberto Gil)

22 março 2007

Um livro para ler, um braço para encostar, um olhar para fazer dormir o que não sossega... Soluções esgotadas, intenções abafadas, mãos atadas e pés alados para fazer dançar aquilo que escorrega e escorre por um corpo que teima em ser são... Horizonte limitado pelas mesmas palavras e sonhos: para onde ir se para lá da porta não há encanto? Só uma beleza vindo de ilusões que colorem o buraco negro ou cinza ou vermelho-sangue e uma vida emergindo do sofrimento revestido e da solidão que empurra para um abismo de relações sustentadas por um bárbaro barbante, entres seres e coisas sós, inanimados e cruelmente animados para assistirem a um espetáculo em que são sarados daquilo que dói em silêncio... O fim tão próximo: na pele que mostra o limite e se arrepia e esfria e procura o calor que ilude para manter o esqueleto ereto... Um livro para escrever, uma mão para acarinhar, uma boca para sorrir e cuspir o que faz engasgar... O destino tão distante, que aparece por tentar se esconder... Horizonte ilimitado, nas palavras e nos sonhos: para que ficar se para cá da porta só há desencanto?

21 março 2007

por Arnaldo Antunes
"Tira a asa"
Publicado no livro PALAVRA DESORDEM (2002)



19 março 2007

Fugindo
do que surge
urgente e rugindo
tentando rasgar
as folhas escritas
e meu peito
que resiste em olhar
para aquilo que aparece
e pede
e grita
e emudece
por não oferecer a palavra
tão familiar e estranha
vestida com fantasias criadas
travestida de ilusões ridículas
que tentam conter
tudo aquilo que é nítido
mas que foge do meu olhar
tão estúpido que o expulsa
para não enxergar
com medo de ver
aquilo que pulsa e mata
e me faz criar
você

17 março 2007

Oro durante as horas
Para trazer de volta
A fé que outrora
Me acompanhou:

Deus,
Destrua-me nesse templo
Para salvar meu peito
Que de sonhar é gasto
E de viver, tão casto
E carece tanto de tentação

Homem,
Dai-me sua mão que fere
Meu corpo padece
Por querer ter alma
E achar que a calma
É a salvação

Vida,
Traga-me a morte
Pois ao pensar ser forte
Evitei a dor
E, agora, de longe
Imploro por amor

Hoje,
Conte ao meu coração imaculado
Que cometer o pecado
É a libertação
Revelando, ao gritar bem alto:
O segredo sagrado
É a perdição

14 março 2007

Sempre essa
mania de ir
correndo
sem pressa
Sempre
com pressa
querendo ir
Sempre essa:
sem pressa,
sempre!

por marina
por Arnaldo Antunes
"Sempressa"
Publicado no livro PALAVRA DESORDEM (2002)





10 março 2007

no meu canto,
tantos cantos
e canções

pensamento longe,
para eu não ficar
no meu canto
que me expulsa
para não fazer pulsar
aquilo que teima
e queima

sozinha vôo
e vou
atrás do encanto
que me faz cantar
que eu quero tanto
um canto
para me encontrar

08 março 2007

Ele chega devagar como uma brisa fresca que toca um corpo quente, quase febril. Como um vento leve no ar parado, pesado, com tanto em suspensão. Ele abre a porta devagar e aparece quase sem querer e se revela delicadamente e tenta fugir com medo de ficar e... sumir. Ele vem de mansinho porque não quer matar e teme morrer- ele quer viver: sobreviver é muito caro... Ele sonha achando que pensa e pensa para não ver o que quer sonhar. De longe ele vem, tão longe, que precisa voltar. E volta: se perdendo, encontrando, quase chorando. Para um coração que transborda, ter um lar é uma missão, morar é ser, pertencer é legitimar uma vida. Seu olhar triste tem um porquê, assim como sua beleza, sua esquiva, sua luta. Ele vai para não ficar mas fica e finca, tanto!, no coração de quem o sente. Devagar, ele chega e vai, como um temporal que destrói e transforma e traz alívio ao limpar o céu... tão seu.

05 março 2007

De você o presente eu ganho
E nos tornamos instante
Dura-ação deixar-te
Quero deixar-me em ti
Não, não vou evitar
Aquela porta se abriu
E eu atravessei a ponte
Sob a permissão dos olhos teus
Que me guiam
Pro lugar que é meu
E teu
Abrigo
Que protege
E faz demorar
Mas passa correndo
Destruindo nosso lar
Que se constrói
No instante
Que o presente
Nos dá
A duração
De estarmos lá

04 março 2007

Tem mais samba no encontro que na espera
Tem mais samba a maldade que a ferida
Tem mais samba no porto que na vela
Tem mais samba o perdão que a despedida
Tem mais samba nas mãos do que nos olhos
Tem mais samba no chão do que na lua
Tem mais samba no homem que trabalha
Tem mais samba no som que vem da rua
Tem mais samba no peito de quem chora
Tem mais samba no pranto de quem vê
Que o bom samba não tem lugar nem hora
O coração de fora
Samba sem querer

Vem que passa
Teu sofrer
Se todo mundo sambasse
Seria tão fácil viver


Tem mais samba- Chico Buarque