29 março 2007

“Não deveria ter visto. Porque, vendo, ela por um instante arriscava-se a tornar-se individual, e também eles. Era do que parecia ter sido avisada: enquanto executasse um mundo clássico, enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem que ser feito. Mas, tendo visto o que olhos, ao verem, diminuem, arriscara-se a ser um ela-mesma que a tradição não amparava. Por um instante hesitou toda, perdida de um rumo. Mas era tarde demais para recuar. Só não seria tarde demais se corresse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã, o que lhe fora entregue à orla do mundo onde era para ser sozinha- à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lembranças, e como incompreensível lembrete restara o cego talismã, ritmo que era de seu destino copiar, executando-o para a consumação do mundo. Não a própria. Se ela corresse, a ordem se alteraria. E nunca lhe seria perdoado o pior: a pressa. E mesmo quando se foge correm atrás, são coisas que se sabem.”


Trecho de “Preciosidade”,
conto de Clarice Lispector em “Laços de Família”

2 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhoso esse trecho... E, com isso, fico eu tentando relacionar o trecho com o sentimento de q a vida está rindo da minha cara... Será q esse é o ritmo da minha vida????????
Bjo

Marina disse...

será q não é hora de vc rir da vida? aí fica mais fácil vc reconhecer seu ritmo... não? :)